26 maio, 2008

Provocações

Só um empurrãozinho em discussões reincidentes sobre governos que se esquecem que são do povo, pelo povo e para o povo:
A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim. Mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme.
Era de boa paz.
Foram provocando por toda a vida.
Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para onde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Os que morriam eram substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Pra valer. Garantida.
Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu.
E ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
– VIOLÊNCIA NÃO!
Luis Fernando Veríssimo (de verdade!, com “s” e sem acento no “i”)
ZOEIRA, L&PM Editores, 3ª edição, Primavera de 1987, página 29.

Nenhum comentário:

Postar um comentário